quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Ensaio-Assombração

Pedra do Coito não é nome de povoado não, é nome de um lugar. Na verdade é um ponto de encontro de duas estradas que levam a vários povoados. Todos pequenos, de poucas casas, mas que juntos somam a maior área rural do município. Desse encontro de estradas surgiram historias e lendas. Talvez porque no ponto em que duas estradas formam uma encruzilhada o viajante diminui o passo e, ainda que inconscientemente, sabe que aí tem a possibilidade de escolher mudar seu rumo ou seguir firme na escolha já feita, e isso por si só é motivo para historias e lendas. Ou porque em encruzilhadas passam e se cruzam vidas com historias próprias, por vezes não notadas, mas embora anônimas ricas em significado, e vidas quando se cruzam ás vezes viram até lendas. O fato é que o lugar gerou lendas, lendas de arrepiar.
A encruzilhada da Pedra do Coito era mal assombrada. Diziam que lá antigamente tinha um pé de gameleira, e, como todo mundo sabe, debaixo de pé de gameleira em encruzilhada o capeta aparece. A árvore secou e morreu, mas a fama do lugar continuou, e ninguém, ninguém mesmo, se atrevia a passar sozinho lá à noite.
Corriam muitas historias da assombração da Pedra do Coito, e eram contadas em rodas de família a beira de fogões de lenha, com avós, pais, filhos, netos, noras, genros e vizinhos reunidos. Eram contadas também em rodas de cachaça, com homens de calos nas mãos e pele tostada pelo sol bebendo para esquecer ou comemorar o suor da semana. Eram contadas em todos os lugares, pelos meninos nas escolas, por rapazes e moças em alegres encontros de fins de tarde na ainda manha de suas vidas, e até por casais de namorados, quando o namorado queria impressionar: “... ontem passei no Coito era quase meia noite, o cavalo refugou, mas eu fustiguei a espora. Não vi nada não, mas meu cabelo arrepiou e senti um frio na espinha, gritei por Nossa Senhora, pus a mão na garrucha e passei...” E a moça extasiada ficava com olhar apaixonado, admirando a valentia de seu amado.
Das historias contadas havia também as dos que viram o capeta na encruzilhada da Pedra do Coito: “Compadre, eu fiquei até tarde na venda, era lua cheia e a noite estava muito clara, quando fui passando escutei um roncado no mato, pensei que era onça e peguei a garrucha. O roncado ficou mais alto, meu corpo arrepiou todo, olhei para o mato e vi uma porca preta com sete porquinhos pretos saindo na estrada no lugar onde eu tinha acabado de passar. Sarei a cachaça na hora e atirei, mas não é que deu foi um estouro? A garrucha sumiu na minha mão Compadre. E subiu uma fumaça com catinga de enxofre no lugar onde estava a porca com os porquinhos? Pois é, aí eu desmaiei e só acordei no outro dia, dormi ali mesmo, só lembro dos homens me chamando quando já era de manhazinha e eles estavam indo para os pastos juntar as vacas. Foi o capeta que apareceu para mim, não foi cachaça não, se fosse em outro lugar até podia falar que eu desmaiei por causa da pinga, mas na Pedra do Coito e eu nem bebi tanto assim...”
E o capeta da Pedra do Coito também era, de vez em quando, um cabrito preto de três pernas, esse até meu pai, que era um homem que não mentia, me contou que viu. Quando chovia à noite e ele ficava com saudades de seus tempos de mocidade, meu pai contava historias e casos de sua vida. Sentávamos espalhados pela cozinha de nossa casa, “esquentando” fogo no fogão de lenha, e meu pai falava calmamente, sua voz pausada e seu olhar distante, parecendo estar enxergando na fumaça da lenha mal queimada o seu passado distante. Da Pedra do Coito ele contava que uma noite foi pescar um pouco mais embaixo de lá, quando já estava se preparando para voltar, quase meia noite, ouviu um assobio fino e um vento gelado passou por ele. Olhou na direção da encruzilhada, onde havia antigamente a gameleira, e viu à luz da lua um cabrito preto de apenas três pés atravessando a estrada. Lembro-me que lhe perguntei o que fez, e com sua voz calma e pausada ele me respondeu que nada, simplesmente rezou o“credo”(pai-nosso, no linguajar antigo da roça) e foi embora. E arrematou dizendo que se ele não mexia com o capeta então o capeta também não podia mexer com ele. Hoje pensando nessa ultima explicação entendo que isso era uma lição de vida. Era assim, com poucas palavras e exemplos de sua vida, que meu pai me preparava para ser um homem.
Meu pai morreu há muitos anos, os moradores antigos dos povoados também. Muitas das historias morreram juntas com eles, mas a Pedra do Coito continua lá. E eu penso que as assombrações também. Talvez o que tenha acontecido e que faz com que ninguém as veja mais, o que faz com que elas não assustem mais, é que o mundo mudou e as pessoas hoje são diferentes. Não se tem mais tempo para ser gente de fato, o ser humano está se tornando coisa, objeto. Uma pessoa é o que tem em bens materiais, em diplomas, e é o que projeta ser, como um ator em um filme. A vida anda tão corrida que ninguém repara nem em si mesmo nem no outro a seu lado. Ninguém hoje olha para dentro de si mesmo e se percebe como um ser humano. E talvez, apenas talvez, as assombrações como as da Pedra do Coito só se interessem por gente e só aparecem para pessoas de verdade.
Eu acredito que elas estão lá, se você duvida vai à Pedra do Coito, sozinho, a meia noite, se tiver coragem, porque eu não tenho.


Roberto C. G. Nascimento (Betão).
Jornalista Reg. Profissional
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