segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Ensaio-O estranho caso de Zé Curuja

Zé Curuja morreu. Faleceu como viveu, de forma anônima, quase sem ser notado.
Meu pai foi ao enterro e me contou que havia apenas quatro pessoas no velório, e ainda brincou que foi a conta exata, uma pessoa para cada alça do caixão. Ainda disse que se fosse um rico seria um enterro concorrido. Mas Zé Curuja era pobre, morreu de velhice no asilo onde foi aceito por caridade. No inicio de sua ida eu me lembro bem, era criança e encontrava sempre com ele na rua, vinha fazer pequenos serviços para as irmãs de caridade que administravam o asilo, pequenas compras, pagamentos, trazer ou buscar encomendas, e coisas assim. Vestia sempre roupa gasta e chinelo de dedo, aliás, estes eram seus únicos pertences nesta terra, mas estava então sempre limpo, bem asseado, e com uma expressão serena, em paz com sua alma e sem rancor com o mundo, sem maldizer a vida passada, presente ou futura.
Meu pai sempre foi amigo dele, me lembro disso desde que me lembro de ser gente. Zé era um homem bom, gostava de falar sobre futebol, noticias de jornal, e me tratava com um respeito e atenção que mesmo eu sendo criança tinha a impressão que era adulto e me sentia importante. Esse jeito dele era o de um homem nobre, gentil e sem nada de egoísmo na alma. Só muito mais tarde fui entender isso, vendo a falta de caráter e a velhacaria que o mundo tanto valoriza e que por vezes torna tantos homens miúdos homenageados e laureados pela sociedade. Fui entendendo ao longo da vida que um mundo tão torto como o nosso, em que o egoísmo é premiado, onde tanto se busca a grandeza humana distorcendo até a vontade de Deus, nomeando a vaidade de deixar marcas na historia como sendo obra de Deus, fui compreendendo que Zé Curuja era de fato um verdadeiro homem santo. Um santo que vi tantas vezes caído bêbado na calçada, de roupa suja e calça mijada.
Nunca conheci bem a historia de Zé, quando ele morreu eu tinha uns dezesseis ou dezessete anos, pensava então a vida como um grande buteco, noites com muitas madrugadas e vinhos baratos. Lia muitos livros de autores famosos, pensava em como me tornar um grande homem e melhorar o mundo, nessa época eu não tinha tempo para sequer notar a existência de Zé Curuja.
A amizade de meu pai com ele era antiga, bebiam juntos, conversavam muito, às vezes meu pai o convidava para almoçar em nossa casa, mas ele sempre recusava com uma desculpa qualquer, hoje sei que era na verdade humildade. Ocasiões havia também que meu pai o chamava para fazer limpeza em nosso quintal, então ele aceitava o almoço, mas não sentava a mesa, pedia para que seu prato fosse levado no quintal mesmo, era eu quem levava, e conversávamos durante sua refeição. Eu percebia que ele era um homem inteligente e para a época até culto, gostava de livros, lia jornais, e isso na década de 1970, em uma cidade do interior, era habito permitido apenas para o que se chamava elite social.
Passados muitos anos outra noite tive um estranho sonho com Zé Curuja. Ele olhava seu velório, e via meu pai carregando uma das alças do caixão, e meu pai estava triste, mas não chorava, porque meu pai nunca soube chorar, assim como eu, e agora sei como isso dói, como é triste não saber chorar. E Zé Curuja olhou seu próprio enterro e depois saiu andando de cabeça baixa, sem reclamar, sem esperar ir para o Céu, sem medo de ir para o inferno, seguiu resignado como viveu, apenas esperando a vontade de Deus, e caminhava triste pensando em como foi derrotado pela vida. Ele foi andando, e a estrada ia em direção ao nada, e sua vida foi passando pela sua cabeça, infância pobre, trabalhando a dia para ajudar a mãe viúva, os irmãos se perdendo no mundo, ele ficando sozinho ainda jovem, a bebida oferecida de graça, o vicio, noites dormidas em cantos de ruas e a vida no fundo de um copo de cachaça. Zé então sentou, se sentiu perdido, mas não teve medo nem chorou, apenas se resignou e ficou esperando tranqüilo que Deus o julgasse, entendendo que merecia o inferno e ele iria sem reclamar, era uma ovelha perdida. Zé ouviu passos e viu um velho vindo em sua direção, o velho parou e lhe disse muito obrigado: “Você não me conhecia e tantas vezes cuidou de minhas feridas no asilo, e teve paciência comigo, ouviu mil vezes as mesmas historias de um velho caduco e solitário, eu no abandono de minha velhice via em você um enviado de Deus, e por isso reforçava minha fé Nele, sua caridade salvou minha alma Zé. ”E seguiu caminhando. Novamente passos e Zé viu chegar um homem bem vestido, parecendo rico, e o homem disse: “Lembra-se de mim? Bebemos juntos, e você me dizia sempre que o bar não era meu lugar, me aconselhava a cuidar melhor de minha família, me dizia para usar meu dinheiro para ajudar os outros, me dizia para pensar em Deus. E eu ria de você, te pagava mais bebida, e nunca te perguntava porque você me aconselhava e continuava bebendo, eu te respeitava muito Zé, e se tivesse te ouvido hoje não estaria onde estou, só vim porque me permitiram vir te agradecer pelo bem que você me quis.” E durante um tempo que os sonhos não nos fazem quantificar Zé recebeu muitas pessoas que tinham motivos para lhe agradecer por pequenas coisas, mas que tiveram um significado grande para elas, mendigos com quem dividiu um pedaço de pão seco, homens e mulheres que foram crianças de rua a quem aconselhou e as vezes ate corrigiu como se um pai ele fosse, pobres como ele a quem visitou em momentos de doenças, e muitas pessoas pararam para agradecer-lhe por coisas que ele nem ao menos se lembrava de ter feito. E Zé chorou, deveria dizer pela primeira vez em sua vida, mas ele estava morto. Quando suas lagrimas caíram no chão um anjo apareceu, pegou sua mão e disse que Deus tinha um lugar especial para ele, e Zé disse ao anjo: “Eu não mereço, não sou digno, nem ao menos eu sei rezar direito”. O anjo sorriu, e carregou Zé para o Céu, e eu acordei chorando.











Roberto C. G. Nascimento (Betão).
Jornalista Reg. Profissional
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